30.12.06

Receita de Ano Novo



Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser;
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?
passa telegramas?)


Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar arrependido
pelas besteiras consumidas
nem parvamente acreditar
que por decreto de esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.


Para ganhar um Ano Novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

(Carlos Drummond de Andrade)

Que 2007 vos traga uma pitada de tudo o que há de bom no mundo: Paz, Harmonia, Amor, Alegria, Saúde, Felicidade, ...

28.12.06

Improviso

Foto colhida na net, aqui.


Húmido de beijos
e de lágrimas,
ardor da terra
com sabor a mar,
o teu corpo
perdia-se no meu.

(Vontade de ser barco
ou de cantar)

(Eugénio de Andrade)

22.12.06

História Antiga



Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

(Miguel Torga)

Feliz Natal com muita Paz e Harmonia

15.12.06

As poucas palavras

Foto colhida na net aqui.

Foi um dia, e outro dia, e outro ainda.
Só isso: o céu azul, a sombra lisa,
o livro aberto.
E algumas palavras. Poucas,
ditas como por acaso.

Eram contudo palavras de amor.
Não propriamente ditas,
antes adivinhadas. Ou só pressentidas.
Como folhas verdes de passagem.
Um verde, digamos, brilhante,
de laranjeiras.

Foi como se de repente chovesse:
as folhas, quero dizer, as palavras
brilharam. Não que fossem ditas,
mas eram de amor, embora só adivinhadas.
Por isso brilhavam. Como folhas
molhadas.

(Eugénio de Andrade)

7.12.06

A inigualável

Foto colhida na net, aqui.

Ai, como eu te queria toda de violetas
E flébil de cetim ...
Teus dedos longos de marfim,
Que os sombreassem jóias pretas ...

E tão febril e delicada
Que não pudesses dar um passo -
Sonhando estrelas transtornada,
Com estampas de cor no regaço ...

Queria-te nua e friorenta,
Aconchegando-te em zibelinas -
Sonolenta,
Ruiva de éteres e morfinas ...

Ah! que as tuas nostalgias fossem guizos de prata -
Teus frenesis, lantejoulas;
E os ócios em que estiolas,
Luar que se desbarata ...

..........................................

Teus beijos, queria-os de tule,
Transparecendo carmim -
Os teus espasmos, de seda ...

- Água fria e clara numa noite azul,
Água, devia ser o teu amor por mim ...

(Mário de Sá-Carneiro)

25.11.06

Impetuoso, o teu corpo ...

Foto colhida na net, aqui.

Impetuoso, o teu corpo é como um rio
onde o meu se perde.
Se escuto, só oiço o teu rumor.
De mim, nem o sinal mais breve.


Imagem dos gestos que tracei,
irrompe puro e completo.
Por isso, rio foi o nome que lhe dei.
E nele o céu fica mais perto.

(Eugénio de Andrade)

18.11.06

Água viúva, chuva louca, ave estonteante

Imagem colhida na net, aqui.

Água viúva, chuva louca, ave estonteante,
sonho de triunfos como a nova folhagem,
escapa-se da morte, é a macieira na tempestade
e ainda louca, louca ainda e transparente, quase seda azul
treme como uma canção e como as cores da distância,
quando a luz carregada de frutos e de uma água de cigarras
veste as agulhas do pinheiro de pequenos recados para o vento.
As víboras acordam a erva carregada de instantes,
o desespero impiedoso abre trincheiras na saudade
onde as mãos descobrem o crime, as abelhas por terra,
a lua na relva, apatetada e doce.
Começa o vinho por recordar os olhos bêbedos de tristeza
e a uma porta, finalmente a uma porta, um guerreiro reúne
o silêncio das ágatas sob as vigias do vento.
O campo cobre-se de cidades que florescem das espadas
e nos ombros de um sangue imemorável aconchega-se o remorso
como um cisne no orvalho. O medo solta
os cavalos do amor e as últimas pombas.
O azul é, decerto, a memória de outro céu profundo.

Antes, muito antes do fogo, como arderam as lágrimas?

(Joaquim Pessoa)

12.11.06

É noite pura e linda

Foto de Victor Melo colhida aqui

É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D'olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d'alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora... Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh'alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija... e a tua alma passa!...

(Florbela Espanca)

4.11.06

Pele

Foto colhida aqui.

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

(David Mourão-Ferreira)

27.10.06

O amor cerra os olhos ...

Foto colhida na net, aqui.

O amor cerra os olhos, não para ver mas para absorver: a obscura transparência, a espessura das sombras ligeiras, a ondulação ardente: a alegria. Um cavalo corre na lenta velocidade das artérias. O amor conhece-se sobre a terra coroada: animal das águas, animal do fogo, animal do ar: a matéria é só uma, terrestre e divina.

(Alexandre O'Neil)
in Três Lições Materiais(1989)

20.10.06

Toca-me onde me dói ...

Foto colhida na net, aqui.

Toca-me onde me dói e verás
uma flor a abrir-se lentamente
sobre a pele, a maravilha nunca
adivinhada de um mistério. Esta

é a tua vez de o desvendares .
paixão é uma palavra demasiado
antiga no meu corpo, já não sei a
última vez, a única vez. Toca-me

por isso devagar, não me lembro
da primavera que fez nascer a
doença sobre a ferida, não sinto
o recorte da cicatriz que o tempo

pousou nela. Agora chama-me ao
teu peito com as mãos, tal como a
chuva chama pelos narcisos sem

cessar, ano após ano; diz o meu
nome com os dedos a serem rios
que latejam no coração adormecido

de uma aldeia. Não me adivinhes .
lá, onde me doer, vou recordar-me.

(Maria do Rosário Pedreira)

9.10.06

Superação

Foto colhida na net aqui.

Fechei-me dentro dos muros
onde o meu corpo não cabia
contente de ser priosioneira
do cárcere que eu transcendia.

E fui no vento que tudo
tudo o que havia varria,
contente de ser mais veloz
que o vento que me impelia.

Fiquei suspensa dos ramos
que os meus cabelos prendiam
contente de ser o destino
da árvore em que me fundia.

E dei-me como leito às águas
dos sonhos que me transcorriam
contente de ser o curso
da água em que me esvaía.

(Natália Correia)

3.10.06

Rio vai, vai …

Foto de Manuela Vaz

Rio vai, vai …
desagua no mar
desagua na ternura
deixa o desespero calado
rasgar a tua angústia
ladeada pelas tuas margens
doutro rio
A Vida

(Fernando Bouça)

25.9.06

Céus em Fogo

Foto colhida na net, aqui

Um corpo, certamente. Mas que é um corpo?
Boca, seios, coxas, sexo,
um sorriso, a mão que afaga, voz?
Que trevas, quais trevas,
de esquecer ou ir tão fundo
quando o desprender-se da alma abre
nas portas da luxúria os céus em fogo?

(Adolfo Casais Monteiro)

21.9.06

Paraíso

Foto colhida na net, aqui.

Deixa ficar comigo a madrugada,
para que a luz do Sol me não constranja.
Numa taça de sombra estilhaçada,
deita sumo de lua e de laranja.

Arranja uma pianola, um disco, um posto,
onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

Depois, podes partir. Só te aconselho
que acendas, para tudo ser perfeito,
à cabeceira a luz do teu joelho,
entre os lençóis o lume do teu peito...

Podes partir. De nada mais preciso
para a minha ilusão do Paraíso.


(David Mourão-Ferreira)

14.9.06

As amoras

Foto colhida na net aqui

O meu país sabe a amoras bravas no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

(Eugénio de Andrade)

11.9.06

A dança

"Affection" de Alfred Gockel

Não te amo como se fosses a rosa de sal, topázio
Ou flechas de cravos que propagam o fogo:
Te amo como se amam certas coisas obscuras,
Secretamente, entre a sombra e a alma.
Te amo como a planta que não floresce e leva
Dentro de si, oculta, a luz daquelas flores,
E graças a teu amor vive escuro em meu corpo
O apertado aroma que ascendeu da terra.
Te amo sem saber como, nem quando, nem onde,
Te amo assim directamente sem problemas nem orgulho:
Assim te amo porque não sei amar de outra maneira,
Senão assim deste modo que não sou nem és,
Tão perto que tua mão sobre o meu peito é minha,
Tão perto que se fecham teus olhos com meu sonho.


(Pablo Neruda)

4.9.06

Cidade

Porto, da Torre - foto de Manuela Vaz

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

31.7.06

Pausa ...


Caros amigos(as) e vizitantes deste espaço, peço desculpa por esta interrupção ... mas o blog segue dentro de um mês :-))) É que vou gozar uma merecidas férias e, desta feita, deixo também a net para trás!


Até Setembro.
Beijinhos!

26.7.06

As ondas

Foto colhida algures na net ...

As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

24.7.06

Canção da minha tristeza

Foto original colhida aqui e posteriormente alterada

Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.

Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.

A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.

E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

(Joaquim Pessoa)

18.7.06

Manto de ternura

Foto colhida aqui

Dizer-te, meu amigo,
que, à uma da manhã
e desta noite,
está lindo o nevoeiro

que um manto de sossego
assim inteiro
eu desejava dar-te
- e ter comigo.

Enviava-te um frasco,
se pudesse,
fechado em carta azul,

ou por fax de sol
(não fora o medo que o sol
o desfizesse)

Assim, mando daqui
esta espessura
de cheiro muito branco
e muito belo:

um manto de ternura
dobado num novelo,
que chegue
até aí.

(Ana Luísa Amaral)

10.7.06

véus brancos ...

Foto colhida na net aqui


véus brancos sobre a
noite escura da cidade.

o teu rosto à contraluz
diáfana da noite.

a saia. e no pano negro
do teu vestido de noite
adivinham-se as pernas,
a forma arredondada dos
teus seios. beijo teus lábios
e luz nos teus olhos, nos meus,
nos teus, o desejo. estamos
sós, já regressámos da festa.
tiro-te a blusa e a noite
rasga-se no despontar belo
e firme do teu peito. beijo-te
sempre deslumbrado como se fora
a primeira vez. deslumbra-se um
halo sob a nudez do teu corpo
e a tua púbis é um peixe e as
algas macias são a pele onde
em voo se aproxima a fragrância
do que se ama e não se esquece

o teu corpo.


(Fernando Bouça)

4.7.06

Dançarina espanhola

Foto colhida na net aqui

Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.

(Rainer Maria Rilke)
(Tradução: Augusto de Campos)

28.6.06

Apenas um corpo

Foto colhida aqui

Respira. Um corpo horizontal,
tangível, respira.
Um corpo nu, divino,
respira, ondula, infatigável.

Amorosamente toco o que resta dos deuses.
As mãos seguem a inclinação
do peito e tremem,
pesadas de desejo.

Um rio interior aguarda.
Aguarda um relâmpago,
um raio de sol, outro corpo.

Se encosto o ouvido à sua nudez,
uma música sobe,
ergue-se do sangue,
prolonga outra música.

Um novo corpo nasce,
nasce dessa música que não cessa,
desse bosque rumoroso de luz,
debaixo do meu corpo desvelado.

(Eugénio de Andrade)

26.6.06

Auto de Fé

Foto de Kazuo Okubo colhida aqui

Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa

a verdadeira mulher – rival.

Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos

E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher - fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.

(Manuela Amaral)

22.6.06

Confissão

Foto de André Silva colhida aqui

Aborreço-te muito. Em ti há qualquer cousa
De frio e de gelado, de pérfido e cruel,
Como um orvalho frio no tampo duma lousa,
Como em doirada taça algum amargo fel.

Odeio-te também. O teu olhar ideal
O teu perfil suave, a tua boca linda,
São belas expressões de todo o humano mal
Que inunda o mar e o céu e toda a terra infinda.

Desprezo-te também. Quando te ris e falas,
Eu fico-me a pensar no mal que tu calas
Dizendo que me queres em íntimo fervor!

Odeio-te e desprezo-te. Aqui toda a minh'alma
Confessa-to a rir, muito serena e calma!
..............................................................
Ah, como eu te adoro, como eu te quero, amor!...

(Florbela Espanca)

16.6.06

E, de novo, nos damos ...

Foto colhida aqui

E, de novo, nos damos, nos propomos
como pássaros livres e seguros
de pertencer-lhes o sabor dos pomos.

(Daniel Filipe)

11.6.06

O amor ...

Foto colhida aqui

O amor

é o amor
O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar,a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar,cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino,sem medo,sem pudor,
e trocamos -somos um? somos dois?-
espírito e calor!

O amor é o amor -e depois?!

(Alexandre O'Neil)
in:Abandono Vigiado(1960)

5.6.06

Sou um narciso de Saron ...

Foto colhida aqui

– Sou um narciso de Saron,
uma açucena dos vales.

– Como açucena entre espinhos
é a minha amada entre as donzelas.

– Macieira entre as árvores do bosque,
é o meu amado entre os jovens;
à sombra dele eu quis sentar,
com seu doce fruto na boca.

Ele me levou à adega,
e contra mim desfralda
sua bandeira de amor.

Sustentem-me com bolos de passas,
dêem-me forças com maçãs, oh!
que estou doente de amor..:

Sua mão esquerda
está sob a minha cabeça,
e com a direita ele me abraça.

– Filhas de Jerusalém,
pelas cervas e gazelas do campo,
eu conjuro vocês:
não despertem, não acordem o amor,
até que ele o queira!

(in O Cântico dos Cânticos – Velho Testamento)

2.6.06

Estavas sentado ...

Foto de Pedro Palma

Estavas sentado e havia uma paisagem agreste
nos teus olhos: as nuvens a prometerem chuva,
os espinheiros agitados com a erosão das dunas,
um mar picado, capaz de todos os naufrágios.

O teu silêncio fez estremecer subitamente a casa -
era a força do vento contra o corpo do navio; uma
miragem fatal da tempestade; e o medo da tragédia;
a ameaça surda de um trovão que resgatasse a ira
dos deuses com o mundo. Quando te levantaste,

disseste qualquer coisa muito breve que me feriu
de morte como a lâmina de um punhal acabado
de comprar. (Se trovejasse, podia ser um raio
a fracturar a falésia no espelho dos meus olhos.)

Hoje, porém, já não sei que palavras foram essas -
de um temporal assim recordam-se sobretudo os despojos
que as ondas espalham de madrugada pelas praias.


(Maria do Rosário Pedreira)

30.5.06

Canção

Imagem retirada daqui

Tinha um cravo no meu balcão;
veio um rapaz e pediu-mo
– mãe, dou-lho ou não?

Sentada, bordava um lenço de mão;
veio um rapaz e pediu-mo
-- mãe, dou-lho ou não?

Dei um cravo e dei um lenço,
só não dei o coração;
mas se o rapaz mo pedir
-- mãe, dou-lho ou não?

(Eugénio de Andrade)

26.5.06

Viagem

Imagem colhida na net

eu contigo viajo.
Para tempos para lugares
que não sabia: onde
aquele lugar que ainda me espera
secreta coincidência lembra
aquele dia que chovia.

eu contigo viajo.
Vou de avião. Aqui Sampetersburgo
adiante Miami Tumbuctu Viena
ou mais ao pé da porta o Porto
o Dubai que deixamos para trás
porque o calor demais a arquitectura.

eu contigo viajo.
No teu corpo há um mapa um continente
vulcões de lava acesa noite dentro.
Se me beijas é para sul que viajamos
se em ti me afundo o mundo estremece
é um lugar turbulento nos teus braços o mar.

(Bernardo Pinto de Almeida)

20.5.06

Meu corpo

Imagem colhida aqui

Meu corpo
é um barco sem ter porto
tempestade no mar morto
sem ti.

Teu corpo
é apenas um deserto
quando não me encontro perto
de ti.

Teus olhos
são memórias do desejo
são as praias que eu não vejo
em ti.

Meus olhos
são as lágrimas do Tejo
onde eu fico e me revejo
sem ti.

Quem parte de tão perto nunca leva
as saudades da partida
e as amarras de quem sofre.

Quem fica é que se lembra toda a vida
das saudades de quem parte
e dos olhos de quem morre.

Não sei
se o orgulho da tristeza
nos dói mais do que a pobreza
não sei.

Mas sei
que estou para sempre presa
à ternura sem defesa
que eu dei.

Sozinha
numa casa que é só minha
espero o teu corpo que eu tinha
só meu.

Se ouvires
o chorar de uma criança
ou o grito da vingança
sou eu.

Sou eu
de cabelo solto ao vento
com olhar e pensamento
no teu.

Sou eu
na raiz do pensamento
contra ti e contra o tempo
sou eu.

(Ary dos Santos)

15.5.06

Estamos unidos ...

Foto colhida aqui

Estamos unidos e separados
pela nervura da Folha
mas somos um só
quando queremos
Ser FOLHA.

(Fernando Bouça)

12.5.06

Poema sobre a recusa

Foto de Paulo Alegria colhida aqui

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.

(Maria Teresa Horta)

5.5.06

Casa de sol ...

Fotografia colhida aqui

Casa de sol onde os animais pensam
erguida nos ares com raízes na terra
ampla e pequena como um pagode
com salas nuas e baixas camas
casa de andorinhas e gatos nos sótãos
grande nau navegando imóvel
num mar de ócio e de nuvens brancas
com antigos ditados e flores picantes
com frescura de passado e pó de rebanhos
ó casa de sonos e silêncios tão longos
e de alegrias ruidosas e pães cheirosos
ó casa onde se dorme para se renascer
ó casa onde a pobreza resplende de fartura
onde a liberdade ri segura

(António Ramos Rosa)
de Voz Inicial(1960)

28.4.06

O Corpo

Imagem colhida aqui

É pêssego
Tangerina
E é limão

Tem sabor a damasco
e a alperce

Toma o gosto da canela
de manhã
e à noite a framboesa que se despe

De maça guarda o pecado
e a sedução

Do mel
o açúcar que reveste

Do licor
a febre que no seu rasgão
me invade me inunda e me apetece

Mergulho depressa a minha boca
e bebo a sede
que em mim já cresce

Delírio que me enche
de prazer
tomando o ponto num lume que humedece

Devagar mexo sem tino
as minhas mãos

Provando de ti
o que de ti viesse

O anis do esperma
o doce odor do pão
que o teu corpo espalha e enlouquece

(Maria Teresa Horta)

20.4.06

Os Jardins de Adónis III

Imagem colhida aqui

Estranhos à terra, os namorados
O jardim os esconde do tempo
E pela alameda vão castos
Criando um puro sentimento

Para um vago paraíso deslizam
Numa luz chireante de beijos
Riem-se da morte e em seus riso
Jorra o claro riso dos deuses.

Figuras de uma indemne passagem
Entre os nossos letais desacertos,
Quem são esses vultos de aragem?
Ninguém sabe de que vida são feitos.

Que língua falam? Talvez os pássaros
Entendam seus sons estrangeiros.
Serão um sonho sob os álamos
Ou os únicos seres verdadeiros?

Onde vão? Misteriosos só param
Para ciciar dentro de um rainúnculo
Um segredo que as flores intactas
Repetem até ao fim do mundo.

(Natália Correia)

12.4.06

Desafio

Foto colhida na net aqui

A Fome

"Vi ontem um bicho, na imundície do pátio, catando comida entre os detritos (...) O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem."


As estrelas ao longe
A cidade maravilhosa
A escuridão claramente triste
Testemunhavam:

A fome.

Encarcerada nos escombros,
Nos corpos imunes -
Crianças, grávidas, velhos, desempregados -
Nas bactérias resistentes tanto quanto ao calor
Humano!

A Vigilância Sanitária diz:
"O calor descaracteriza o produto
não serve para a alimentação
humana".

Humana?...

A Polícia tenta conter,
As lágrimas,
Diante das cinzas,
Dos miseráveis,
Superiores aos de Victor Hugo:
"Não tenho coragem de coibir".
Irajá, Acari,

Vigilância, bactérias,
Cinzas, rebentos,
Polícia, alimentos,
Ceasa, o calor...
Artistas kafquianos?
O frio

De nossa desumanidade errática.

(Juscelino Mendes)

O desafio: Divulgar para Ajudar ...

O desafio, se o aceitarem, consiste em divulgar uma associação humanitária da vossa escolha, Nacional ou Internacional. Eu convido-vos a clicar em Receitas Contra a Fome.

Um post, um link, um símbolo, um gesto solidário ...

Depois desafiem outros cinco à criatividade e à inspiração. pois divulgar também é uma forma de ajudar ...

Eu desafiei Anomalias, Bufagato, Jorge Moreira, Outra Voz e Webclub.

7.4.06

Não tenhas medo do amor

Foto colhida aqui

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

(Maria do Rosário Pedreira)

31.3.06

A brusca poesia da mulher amada

Imagem colhida aqui.

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.

(Vinícius de Moraes)

25.3.06

Nas ervas

Foto original colhida aqui.


Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura,
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso,
descer os flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão,

porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve,

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho —
a glande leve.

(Eugénio de Andrade)

16.3.06

Os (teus) gestos

Adam & Eve de Tamara De Lempicka, colhido aqui

Disto ficarão pequenos gestos
nada de grandioso que se exclame

sorte de te ter junto aos meus restos
memória de tua boca fogo infame.

Vitória do teu corpo sobre o meu
no exacto momento em que te venço

tão só correr de nuvens sobre o céu
ou no fim do mundo um recomeço.

Queria inventar-te um sítio sem palavras
em que só sobre o corpo a luz derrama

sua generosa claridade.
Lembrar-te nos momentos em que amavas

— os corpos extenuados sobre a cama —
e havia um sol de não haver idade.

(Bernardo Pinto de Almeida)

13.3.06

Tentei fugir da mancha mais escura ...

Sea Serpents IV, de Gustav Klimt colhido aqui

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

(David Mourão-Ferreira)

6.3.06

Fado

Passion's Embrace de Alfred Gockel colhido aqui

Falam de nós na cidade
Porque dizem que te ofereço
Coisas de que não disponho,
Como se fosse maldade
Dar-te os olhos para berço
E os cabelos para sonho.
Dizem que quando eu me deito
Contigo uma lua negra
Vem fazer o casamento.
Como se fosse defeito
Saber que a vida não chega
Para o nosso sentimento.
Lá porque o nosso passeio
É uma fuga das grades
Que em cada gesto partimos,
Dão um nome muito feio
Àquelas intimidades
Em que ficando, fugimos.
Dizem que este desatino
É a maldita lembrança
Do pecado original?
Eu só sei que isto é destino
E mesmo que seja herança
É legado natural.
Porque é virtude tocar-te
Tu és mais puro que um deus
Purificas o que afagas.
Meu amor, só de afagar-te
A minha mão chega aos céus
E sou mais forte que as pragas.

(Natália Correia)

20.2.06

Ausência

Por razões de saúde tenho estado ausente deste meu cantinho e da net em geral. Assim vou continuar ainda mais uns dias. Depois prometo regressar em força!

A todos quantos por aqui passam, um beijinho da

Pink

12.2.06

Mar, metade da minha alma é feita de maresia ...

Foto de Manuela Nunes, colhida aqui.

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.


(Sophia de Mello Breyner Andresen)

10.2.06

Para o meu coração ...

Alfred Gockel, Body Language III

Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a tua alma.

És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.

Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste como uma viagem.

Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.


(Pablo Neruda)

8.2.06

É noite pura e linda ...

Foto colhida na net, aqui.

É noite pura e linda. Abro a minha janela
E olho suspirando o infinito céu,
Fico a sonhar de leve em muita coisa bela
Fico a pensar em ti e neste amor que é teu!

D'olhos fechados sonho. A noite é uma elegia
Cantando brandamente um sonho todo d'alma
E enquanto a lua branca o linho bom desfia
Eu sinto almas passar na noite linda e calma.

Lá vem a tua agora... Numa carreira louca
Tão perto que passou, tão perto à minha boca
Nessa carreira doida, estranha e caprichosa

Que a minh'alma cativa estremece, esvoaça
Para seguir a tua, como a folha de rosa
Segue a brisa que a beija... e a tua alma passa!...

(Florbela Espanca)