29.12.05

Penélope

Foto de Karin Rosenthal colhida em www.photoarts.com/

mais do que um sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

e recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

(David Mourão Ferreira)

28.12.05

Andorinha secreta de um verão



Andorinha secreta de um verão,
que só nós dois sabemos, te revelas.
De que longínqua e solitária estrela
vieste iluminar-me o coração?

De que planeta ainda inominado?
De que mistério astral, corpo solar,
patagónia celeste, ignoto mar,
provém o teu perfil sereno e amado?

(Daniel Filipe)

27.12.05

Natal



De repente o sol raiou
E o galo cocoricou:

– Cristo nasceu!

O boi, no campo perdido
Soltou um longo mugido:

– Aonde? Aonde?

Com seu balido tremido
Ligeiro diz o cordeiro:

– Em Belém! Em Belém!

Eis senão quando, num zurro
Se ouve a risada do burro:

– Foi sim que eu estava lá!

E o papagaio que é gira
Pôs-se a falar: – É mentira!

Os bichos de pena, em bando
Reclamaram protestando.

O pombal todo arrulhava:
– Cruz credo! Cruz credo!

Brava

A arara a gritar começa:

– Mentira? Arara. Ora essa!
– Cristo nasceu! – canta o galo.
– Aonde? – pergunta o boi.
– Num estábulo! – o cavalo
Contente rincha onde foi.

Bale o cordeiro também:

– Em Belém! Mé! Em Belém

E os bichos todos pegaram
O papagaio caturra
E de raiva lhe aplicaram
Uma grandíssima surra.

(Vinicius de Moraes)

23.12.05

História Antiga

Foto colhida em www.bethlehem.it/

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

(Miguel Torga)

Nota: Desejo a todos quantos por aqui passam um Bom Natal, pleno de Paz, Amor e Harmonia.

21.12.05

Presídio

Foto de Karin Rosenthal retirada de www.photoarts.com/

Nem todo o corpo é carne ... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco ...?

E o ventre, inconsistente como o lodo? ...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor ... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo ...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono ...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

(David Mourão-Ferreira)

20.12.05

Incêndio



Tu acendes a chama
do meu corpo
pões a lenha ao fundo
em sítio seco

Procuras no desejo
o ponto certo
e convocas aí
o lume aberto

Se a madeira demora
a ganhar fogo
tomas-me as pernas
e deitas lento o vinho

Riscas os fósforos todos
e depois
é mais um incêndio
que adivinho

(Maria Teresa Horta)

18.12.05

Laisse courrir ...

Foto de www.7art-screensavers.com

Laisse courrir
dans les couloirs secrets de ton corps
les chevaux vertigineux de tes désirs.
Eux seules connaissent la destinée
que l'ésprit voilé par des brumes honteuses
n'ose pas découvrir.

(Natália Correia)

16.12.05

Avião

Foto colhida em afixe.weblog.com.pt

Apetecia-me oferecer-te já este livro
este pôr do Sol este avião

levar-te muito para um lugar tranquilo
trazer-te pelo ar uma canção

chamar um rio a ti quando com sede
do sono da manhã te levantasses

saber do vento o termo com que entende
o primaveril milagre dos lilases.

Apetecia-me ser noite ou ave ou luz
ou simplesmente a lua a iluminar-te

ou espelho desdobrando em corpos nus
teu corpo singular se vais deitar-te:

poderoso magneto, íman que induz
animal demente quando a amar-te.

(Bernardo Pinto de Almeida)

15.12.05

Pele

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

(David Mourão-Ferreira)

13.12.05

A noite que fica


Ao longe, ao luar,
No rio, uma vela
Serena a passar,
O que me revela
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me um estranho
E sonho, sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça,
Que amor não se explica.
É a vela que passa
Na noite que fica

(Fernando Pessoa)

11.12.05

Conselho

Paul Klee - Garden

Cerca de grandes muros quem te sonhas
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês ...

(Fernando Pessoa)

8.12.05

Encontro

Foto de Jomané em www.olhares.com/

Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado

um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca

como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso

como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua

como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno

como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor

(Natália Correia)

6.12.05

Quase nada

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

(Eugénio de Andrade)

3.12.05

Poesia

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem,
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

(Fernando Pessoa)

1.12.05

Fernando Pessoa

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

(Fernando Pessoa), 17-6-1932

Nota: Já que no próprio dia não pude homenagear o mestre no aniversário do seu falecimento (ontem), aqui fica hoje a minha homenagem.

28.11.05

Mordo os teus lábios ...

"Mãe Natureza" de A. Brito em www.olhares.com

Mordo os teus lábios
e o mar vem manso
e tardio
Mordo a tua língua
e o desejo aproxima-se
lento e tardio
Mordo o recanto acolhedor
dos teus seios
e o mar vem morrer
no recanto
da tua púbis
a espraiar
Amor.

(Fernando Bouça)

26.11.05

Como açucena ...


Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Como açucena, abre-se o teu rosto
por sobre a doce, tímida paisagem:
serena imagem
na manhã de Agosto.

Como magnólia, vertes o perfume
das tuas ancas sobre o pinheiral:
ávido lume
casto e sensual.

(Daniel Filipe)

22.11.05

Há dias e dias . . .

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Há dias em que sou monja
Há outros em que sou fêmea
E, embruxada, na fogueira
Do amor ponho mais lenha.

Nos dias em que sou monja
Ardo nos claustros da lua.
Nos dias em que sou fêmea
No sol arrefeço , pudica.

(Natália Correia)

20.11.05

Eu queria mais altas as estrelas ...

Foto colhida em www.acap-peru.org/

Eu queria mais altas as estrelas,
Mais largo o espaço, o sol mais criador,
Mais refulgente a lua, o mar maior,
Mais cavadas as ondas e mais belas;

Mais amplas, mais rasgadas as janelas
Das almas, mais rosais a abrir em flor,
Mais montanhas, mais asas de condor,
Mais sangue sobre a cruz das caravelas!

E abrir os braços e viver a vida,
- Quanto mais funda e lúgubre a descida
Mais alta é a ladeira que não cansa!

E, acabada a tarefa... em paz, contente,
Um dia adormecer, serenamente,
Como dorme no berço uma criança!

(Florbela Espanca)

18.11.05

Retrato


Tigre adormecido,
coração do dia.
Rosto semeado
de melancolia.

Noite transparente,
Primavera escura.
Sombra rodeada
de mar e brancura.

Tigre adomecido.
Coração do dia.
Puro e violento
incêndio de alegria.

(Eugénio de Andrade)

16.11.05

Semelhante à imóvel transparência ...


Foto colhida em http://pro.corbis.com/


Semelhante à imóvel
transparência
à inesgotável face
à pedra larga onde o olhar repousa

Água sombra e a figura
azul quase um jardim por sob a sombra
a iminência viva aérea
de uma palavra suspensa
na folhagem

Semelhante ao disperso ao ínfimo
chama-se agora aqui o sono da erva
a ligeireza livre
a nuvem sobre a página

in A Nuvem sobre a Página(1978)
(António Ramos Rosa)

13.11.05

Beijo os teus seios...

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Beijo os teus seios e a tarde comove-se
como se tocassem os sinos.
Levanto a tua cabeça entre os meus dedos e abro contra o dia os teus cabelos
e, logo, as aves do silêncio levantam voo e dançam loucas em volta dos teus olhos
e a tua boca aperta-se,
morde
a minha boca
enquanto as minhas mãos vão procurando nenhum deus à flor da tua pele
por esse caminho branco onde agonizam éguas
vestidas de primavera.

(Joaquim Pessoa)

9.11.05

Mar

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

5.11.05

O corpo


Porque em teu pénis pulsam os papiros
E de seda no sono és um vitelo,
Porque os anéis do plenilúnio adquire-os
A luz de que se ocupa o teu cabelo,

Porque ergues a cabeça e caem lírios,
porque abres a camisa e és muito belo,
Porque um gato de febre em teus delírios
Divaga meus quadris de terciopelo.

Porque eu saio da concha do vestido
E num palor de sol submetido
Declinas no meu fim inominável,

Porque nevo se estás no solstício,
És a paixão votada ao sacrifício
Que devo a uma estrela insaciável.

(Natália Correia)

3.11.05

Um amor como este ...

Um amor como este
não pede mar ou praia:
somente o vento leste
erguendo a tua saia.

O resto é o futuro
além, à nossa espreita:
doce fruto maduro
na hora da colheita.

(Daniel Filipe)

1.11.05

Alquimia


Abre a janela
Aquela, onde poisam os pardais
Procura a estrela que brilha mais
Coloca-a no teu peito
E aumenta-lhe o efeito
Com a ternura de um sorriso
Agora, apenas é preciso
Acrescentar uma pitada de poesia
Ou uma noite de amor…
Deixa aumentar o calor
(nada há que o evite)
Esquece a tristeza e verás
Que o céu é o limite
O paraíso és tu mesma quem o faz!

(Albino Santos)

29.10.05

Os jardins de Adónis IV

Foto de Rebeca McGaw em www.wrytersfyre.atspace.com

Alta na sombra a crista de agapantos,
Langue no lago a lua é uma sonata.
Vergam-se ao sono as rosas. Os amantes
Paseiam no jardim com pés de prata.

No repuxo chilreiam sons remotos.
Vultos de fumo expiram sob os plátanos.
Tudo se afasta. Uma elegia. Os mortos
Vêm buscar as flores que nos deixaram.

Cala-se o tempo. O amor procura
A sua estrela que caiu na relva.
Tudo se afasta. É estranhamente pura
A sensação de estarmos sós na terra.

(Natália Correia)

27.10.05

As sem-razões do amor


Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
E com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
É semeado no vento,
Na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
E a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
Bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
Não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
Feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
E da morte vencedor,
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor.

(Carlos Drummond de Andrade)

24.10.05

Eu sei, não te conheço mas existes ...

Foto de Karin Rosenthal colhida em www.photoarts.com/

Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
ao é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
Porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre á tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.

(Joaquim Pessoa)

22.10.05

Antes de tudo ...

"Mais além" de Vitor Melo

Antes de tudo, os olhos:
Aves de ternura, implorando ninhos
em árvore segura.
E a boca, ele viu-a fonte:
eterna nascente de fé no amor,
bordão do descrente.

Amaram-se em silêncios de espanto,
os dedos ávidos
descobrindo sementes de poemas
adormecidos nas fundas raízes dos corpos.
Esqueceram Deus porque Deus lhes perdoava
e esqueceram os homens
porque os homens os não conheciam.
As bocas
afogavam sombras de futuro
talhadas a incerteza
nas próprias almas
e demoraram-se no tempo
porque, cúmplice,
o tempo se demorou neles.

Beijaram-se, dizendo adeus
(quase que um rogo)
em cada peito
uma rosa cor de fogo.

Lelo (23/12/84)

20.10.05

A boca

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?

(Eugénio de Andrade)

18.10.05

As Flores VII

Foto de Pedro Medeiros colhida em www.olhares.com/

Com fragrante delicadeza
De um mistério surges, ó rosa,
Para seres o prazo de beleza
Eternamente transitória;

O teu universo conciso
Só dura o tempo de, amistosa,
Dizeres num recado exíguo
Que o universo é uma rosa.

Nacarado prenúncio ou vestígio
De uma imcompreensível ordem,
É para renomear o prodígio
Que te damos um nome: rosa.

(Natália Correia)

15.10.05

Vegetal e só

Foto de Pedro Costa Pereira colhida em www.olhares.com/

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
sem a febre de tantos lábios.
Sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

(Eugénio de Andrade)

12.10.05

Auf einmal faßt die Rosenpflückerin


Auf einmal faßt die Rosenpflückerin
die volle Knospe seines Lebensgliedes,
und an dem Schreck des Unterschiedes
schwinden die (linden) Gärten in ihr hin.

(Rainer Maria Rilke)

A mulher colhe rosas. De repente
toca o membro vivo dele, botão
cheio. Assusta-a a diferença, e num instante
esvaem-se nela os jardins (de Verão).

(Tradução de João Barrento)

11.10.05

Não tenhas medo do amor

Foto colhida em www.jimnshelle.net/

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

(Maria do Rosário Pedreira)

8.10.05

Mes mains se cherchent . . .


Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Mes mains se cherchent sur ton corps
pour saisir ta forme la plus compléte.
Si tu pars, je garderai la robe
de ta nudité parfaite.

(Natália Correia)

5.10.05

Se . . .


Foto de X. Maya colhida em http://www.olhares.com/


Se o luar agora transbordasse
Da lua cheia e num enleio
Sua luz branda me abraçasse
E me fechasse dentro do seio . . .

Se o sol magnânimo soltasse
Um fio quente do seu cabelo
E no segredo me enrolasse
Do seu dourado novelo . . .

Se um astro agora me arrebatasse
Na sua luz e de repente
A minha sombra se iluminasse
E caminhasse na minha frente . . .

(Natália Correia)

4.10.05

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensangüentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio [puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


(Alexandre O'Neil)

30.9.05

A noite que fica ...

Ao longe, ao luar,
No rio, uma vela
Serena a passar,
O que me revela
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me um estranho
E sonho, sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça,
Que amor não se explica.
É a vela que passa
Na noite que fica

(Fernando Pessoa)

28.9.05

A minha esperança mora ...


Foto colhida em http://www.ci.boulder.co.us/


A minha esperança mora
No vento e nas sereias -
É o azul fantástico da aurora
E o lírio das areias.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

20.9.05

Mar sonoro

Mar sonoro, mar sem fundo , mar sem fim,
A tua beleza aumenta quendo estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho,
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

(Sophia de Mello Breyner Andresen)

18.9.05

Estou vivo e escrevo sol


Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol

Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol

A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida

Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maraviha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde

(António Ramos Rosa)

16.9.05

Nothing gold can stay

Nature's first green is gold,
Her hardest hue to hold.
Her early leaf's a flower;
But only so an hour.
Then leaf subsides to leaf.
So Eden sank to grief,
So dawn goes down to day.
Nothing gold can stay.


(Robert Frost)


Dourado é o primeiro verde da natureza,
para reter seu mais precioso matiz.
Sua folha primeira é uma flor,
mas apenas o é por uma hora.
Então, a uma folha sucede-se outra.
Tal como o Eden mergulhou na dor,
Também a aurora dá lugar ao dia.
Dourado algum jamais perdura.

(Tradução livre: Pink)

15.9.05

Delírio


Foto colhida em http://www.karsten-fotografie.de/

É o meu mel
que eu cheiro na tua boca

É no teu pénis
que eu bebo a sede toda

Nos meus lábios abertos
que me vencem
eu nado devagar sem ter vergonha

É a lagoa - eu digo
de veludo

É o grito - eu sei
na raiva solta

É a proa do prazer
sobre o lençol
onde mais tarde vai rebentar a onda

Secreto é o ruído
dos corpos
no combate
Os elmos já depostos pelo chão
caídas as viseiras e as máscaras
o vestido misturado à armação

São fulvos os cavalos
com as patas cor do pó
tropeçando na paz adormecida

Eu levo a bandeira
do orgasmo
E "para tão grande amor é curta a vida"

(Maria Teresa Horta)

12.9.05

sem nome



Indemne atravessei as labaredas
porque o Amor faz a Obra
e o fogo faz o Amor.

(Natália Correia)

11.9.05

Apelo


Foto de Naná Sousa Dias
em
http://www.1000imagens.com/

Atravessa os caminhos da noite
e vem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.

(Luísa Dacosta)

9.9.05

Canção entregue ao nada


http://pro.corbis.com/

Hoje venho oferecer esta tristeza às coisas
No gesto esquivo de não as desejar.
Pôs em minha alma como o sol nas frias lousas
A vida o gosto de esplandecer em recusar.

São-me alheias estas margens onde corre
O destino que aos dados aos deuses eu lancei.
O que me dói é ver que tudo morre
Noutras mãos em gestos que tracei.

(Natália Correia)

Amor à vista

Entras como um punhal
até à minha vida.
Rasgas de estrelas de sal
a carne da ferida.

Instala-te nas minas.
Dinamita e devora.
Porque quem assassinas
é um monstro de lágrimas que adora.

Dá-me um beijo ou a morte.
Anda. Avança.
Deixa lá a esperança
para quem a suporte.

Mas o mar e os montes ...
isso sim.
Não te amedrontes.
Atira-os sobre mim.

Atira-os de espada.
Porque ficas vencida
ou desta minha vida
não fica nada.

Mar e montes teus beijos, meu amor,
sobre os meus férreos dentes.
Mar e montes esperados com terror
de que te ausentes.

Mar e montes teus beijos, meu amor! ...

(Fernando Echevarria)

7.9.05

Wild nights



Wild Nights! Wild Nights!
Were I with thee,
Wild Nights should be
Our luxury!
Futile the winds
To a heart in port,
Done with the compass,
Done with the chart!
Rowing in Eden!
Ah! the sea!
Might I but moor
To-night in Thee!

(Emily Dickinson)

3.9.05

A palmeira ergue-se ...



A palmeira ergue-se
na paisagem cálida
o corpo ergue-se
Tenso
sob o peso
Denso
do Ar
Amámos o vento
onde os nossos corpos
navegam na densidade
quente
Deste momento.

(Fernando Bouça)

1.8.05

Interregno



Yessssss, chegaram as merecidas férias.
Vou mergulhar neste mar e passear neste areal ....
Assim, vou fazer uma pausa na edição no blog e na net em geral.
Estarei de volta em Setembro, até ... lá fiquem bem!

30.7.05

Pain ...


http://pro.corbis.com/

Pain has an element of blank;
It cannot recollect
When it began, or if there were
A day when it was not.

It has no future but itself,
Its infinite realms contain
Its past, enlightened to perceive
New periods of pain.

(Emily Dickinson)

No silêncio da terra ...

No silêncio da terra.Onde ser é estar.
A sombra se inclina.
Habito dentro da grande pedra de água e sol.
Respiro sem o saber,respiro a terra.
Um intervalo de suavidade ardente e longa.
Sem adormecer no sono verde.
Afundo-me,sereno,
flor ou folha sobre folha abrindo-se,
respirando-me,flectindo-me
no intervalo aberto.Não sei se principio.
Um rosto se desfaz,um sabor ao fundo
da água ou da terra,
o fogo único consumindo em ar.

Eis o lugar em que o centro se abre
ou a lisa permanência clara,
abandono igual ao puro ombro
em que nada se diz
e no silêncio se une a boca ao espaço.

Pedra harmoniosa
do abrigo simples,
lúcido,unido,silencioso umbigo
do ar.


o teu corpo
renasce
à flor da terra.
Tudo principia.

(António Ramos Rosa)

28.7.05

Necessário é satisfazer o ofício das trevas - I


Foto de Paulo Alegria
em http://www.1000imagens.com/


I
Uma dor fina que o peito me atravessa,
A escuridão que envolve o pensamento,
Um não ter para onde ir cheio de pressa,
Um correr para o nada em passo lento,

Um angustiante urgir que não começa,
Um vazio a boiar no alheamento,
Uma trôpega ideia que tropeça
No vácuo de um estranho abatimento.

É tédio? É depressão? Talvez loucura?
É, para um além de mim, passagem escura?
Um ir por ir que não tem outro lado?

É, sem máscaras, a esperança enfim deposta,
Ou no extremo da verdade exposta
A ironia feroz de um deus calado?

(Natália Correia)

27.7.05

Não adormeças ...


Foto de Pedro Velez


Não adormeças: o vento ainda assobia no meu quarto
e a luz é fraca e treme e eu tenho medo
das sombras que desfilam pelas paredes como fantasmas
da casa e de tudo aquilo com que sonhes.

Não adormeças já. Diz-me outra vez do rio que palpitava
no coração da aldeia onde nasceste, da roupa que vinha
a cheirar a sonho e a musgo e ao trevo que nunca foi
de quatro folhas; e das ervas húmidas e chãs
com que em casa se cozinham perfumes que ainda hoje
te mordem os gestos e as palavras.

O meu corpo gela à míngua dos teus dedos, o sol vai
demorar-se a regressar. Há tempo para uma história
que eu não saiba e eu juro que, se não adormeceres,
serei tão leve que não hei-de pesar-te nunca na memória,
como na minha pesará para sempre a pedra do teu sono
se agora apenas me olhares de longe e adormeceres.


(Maria do Rosário Pedreira)

25.7.05

Crepúsculo

É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra...
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.

(David Mourão-Ferreira)

23.7.05

Without warning ...



Without warning
as a whirlwind
swoops on an oak
Love shakes my heart

(Sappho)

21.7.05

O solitário




Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

(Rainer Maria Rilke)
(Tradução: Augusto de Campos)