30.12.07

Feliz 2008 !


Cântico ao Irmão Sol

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor
Teus são o louvor, a glória, a honra
E toda a benção
Só a ti, Altíssimo, são devidos.
E todo o homem é indigno
De pronunciar o Teu nome.
Louvado sejas, meu Senhor
Com todas as tuas criaturas,
Especialmente o senhor Irmão Sol,
Que nos traz o dia
E a luz que nos aquece
Ele que é belo e radiante
No seu grande esplendor
E de ti, Altíssimo, é a imagem.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pela Irmã Lua e as Estrelas,
Que no céu formaste
Preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo irmão Vento,
Pelo ar, e nuvens e tempestades
E todo o tempo
Com que às tuas criaturas dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor
Pela Irmã Água,
Tão útil e humilde
E preciosa e casta.
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelo Irmão Fogo
Com que aqueces a noite,
Ele que é belo e agradável
E vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã a Mãe Terra,
Que nos sustenta e governa
E produz frutos diversos
E flores coloridas e plantas
Louvado sejas, meu Senhor,
Pelos que perdoam por te amarem
E suportam enfermidades e tribulações.
Felizes, os que sofrem em paz,
E que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa Irmã Morte Corporal,
Da qual homem algum pode escapar.
Ai dos que morrem em pecado mortal
E bem-aventurados os que ela acha
Conformes à tua santíssima vontade,
Porque a segunda morte não lhes fará mal!
Louvai e bendizei ao meu Senhor,
E dai-lhe graças,
E servi-o com grande humildade.

(S. Francisco de Assis, 1181-1226, Cântico ao Irmão Sol)

22.12.07

Chove. É dia de Natal ...

Foto colhida algures na net ...

Chove. É dia de Natal.
Lá para o Norte é melhor:
Há a neve que faz mal,
E o frio que ainda é pior.

E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente.
Antes isso que nevar.

Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.

Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o fez,
Pois se escrevo ainda outra quadra
Fico gelado dos pés.

(Fernando Pessoa)

Bom Natal pleno de Paz e Harmonia.

9.11.07

Regresso

Alfred Gockel, Sun dance

Regresso para mim
e de mim falo
e desdigo de mim
em reencontro

os pontos
um por um:

o sol
os braços

a boca
o sabor

ou os meus ombros

Trago para fora
o que é secreto
vantagem de saudade
o que é segredo

Retorno para mim
e em mim toda
desencontro já o meu regresso

(Maria Teresa Horta)

31.10.07

"Quero fazer-te feliz"


quiero hacerte feliz
oí en un instante, en la ausencia
y temi que no existieras


"Quero fazer-te feliz"
ouvi no instante, na ausência
e temi que não existisses

(Ulisses Rolim)

22.10.07

A palavra

Colhido na net em www.flores-guia.com.br


A palavra é uma estátua submersa,um leopardo
que estremece em escuros bosques,uma anémona
sobre uma cabeleira.Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei-la sem destino no clamor da noite,
cega e nua,mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada.Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco-lhe os subtis tornozelos,os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.

(António Ramos Rosa)
de Acordes(1989)

13.10.07



Em cada estela cadente
Que vai perder-se no rio
Uma parte de mim parte
No mistério de um navio.

Sou passageira da noite,
Num veleiro de luar.
O porto onde eu embarquei
É onde devo ir parar.

A onda que vem à praia
E volta de novo ao mar,
Abriu um lírio na areia
Que a brisa vem desfolhar!

Passam navios ao longe,
Num jeito de não parar!...

(Natália Correia)

5.10.07

Sobre a estante e a cómoda ...



Sobre a estante e a cómoda, as flores
que te touxe ao longo dos anos
em que te imaginei

Depois desta noite já reconhecerei
o percurso do teu corpo

ter-me -ás abraçado em silêncio
e mordido os meus lábios
o teu rosto terá deixado de ser invisível

e de manhã abrirei todas as janelas
para gritar o teu sorriso.

(Ulisses Rolim)

19.9.07

As Amoras



O meu país sabe a amoras bravas
no verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

(Eugénio de Andrade), O outro nome da Terra

30.7.07

Interegno para ... Férias!



Até Setembro! Vou de férias bem merecidas!
Yessssssssss!

22.7.07

A felicidade

Imagem colhida na net, aqui


Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A felicidade é como a gota
De orvalho numa pétala de flor
Brilha tranqüila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor

A felicidade do pobre parece
A grande ilusão do carnaval
A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira

Tristeza não tem fim
Felicidade sim

A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar

A minha felicidade está sonhando
Nos olhos da minha namorada
É como esta noite, passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo, por favor
Pra que ela acorde alegre com o dia
Oferecendo beijos de amor

(Vinicius de Moraes)

11.7.07

Como roubar um coração

Foto colhida na net, aqui.

Para se roubar um coração é preciso que seja
com muita habilidade,
tem que ser vagarosamente, disfarçadamente,
não se chega com ímpeto,
não se alcança o coração de alguém com pressa.

Tem que se aproximar com meias palavras,
suavemente, apoderar-se dele
aos poucos, com cuidado.
Não se pode deixar que
percebam que ele será
roubado, na verdade, teremos que
furtá-lo, docemente.

Conquistar um coração de verdade dá
trabalho, requer paciência, é
como se fosse tecer uma colcha de retalhos,
aplicar uma renda em um
vestido, tratar de um jardim,
cuidar de uma criança.

É necessário que seja com destreza,
com vontade, com encanto,
carinho e sinceridade.

Para se conquistar um coração definitivamente
tem que ter garra e
esperteza, mas não falo dessa esperteza que
todos conhecem, falo da
esperteza de sentimentos, daquela que existe
guardada na alma em
todos os momentos.

Quando se deseja realmente conquistar um
coração, é preciso que antes
já tenhamos conseguido conquistar o nosso,
é preciso que ele já tenha
sido explorado nos mínimos detalhes, que
já se tenha conseguido
conhecer cada cantinho, entender cada espaço
preenchido e aceitar
cada espaço vago.

...e então, quando finalmente esse coração
for conquistado, quando
tivermos nos apoderado dele, vai existir
uma parte de alguém que
seguirá connosco.
Uma metade de alguém que
será guiada por nós e o
nosso coração passará a bater por
conta desse outro coração.

Eles sofrerão altos e baixos sim, mas com
certeza haverá instantes,
milhares de instantes de alegria.
Baterá descompassado muitas vezes e
sabe por quê?
Faltará a metade dele que
ainda não está junto de nós.

Até que um dia, cansado de estar dividido
ao meio, esse coração
chamará a sua outra parte e alguém por
vontade própria sem que
precisemos roubá-la ou furtá-la nos entregará
a metade que faltava.

... e é assim que se rouba um coração,
fácil não? Pois é, nós só
precisaremos roubar uma metade, a outra virá
na nossa mão e ficará
detectado um roubo então!

E é só por isso que encontramos tantas pessoas
pela vida a fora que
dizem que nunca mais conseguiram amar
alguém......é simples.......é
porque elas não possuem mais coração,
eles foram roubados, arrancados
do seu peito, e somente com um grande amor
ela terá um novo coração,
afinal de contas, corações são para
serem divididos, e com certeza
esse grande amor repartirá o dele com você!!!!

(Luís Fernando Veríssimo)

29.6.07

livros ...

Imagem colhida na net, aqui.



O convite foi feito pelo TCA, do Abstracto Concreto II. Esolhi 5 livros que gosto.

Confesso que ultimamente não tenho muito tempo para ler, ler mesmo, como eu gosto, sem adormecer de cansaço em cima do livro ou deixando-o cair para o lado. Sempre li muito. Agora só as férias permitem pôr a leitura em dia lendo sem grandes limites.
Entretanto foi difícil escolher 5 livros ... há tantos livros que me marcaram, tantos que releio ciclicamente, tantos livros que considero verdadeiras obras de arte, verdadeira literatura intemporal e que, como tal, são incontornáveis. Enfim, escolhi os promeiros cinco que me vieram à mente. Aqui fica a lista:

Natália Correia – Poesia Completa” – Natália em todas as facetas poéticas, onde se encontra um poema para cada estado de alma.

Paiol de Pólvora” de Joaquim Pessoa – a capa roxa do livro já está tão desbotada que é mais lilás que outra coisa, sinal de que tenho o livro há muito tempo e o leio sempre que me apetece, ao sabor da alma.


“As Mãos e os Frutos” de Eugénio de Andrade – dos muitos que tenho do poeta, o meu preferido, que não me canso de reler. Como diz Jorge de Sena, foi “ escrito, assim, com lucidez sem angústia, ardor sem ingenuidade, segurança sem complacência, inquietação sem azedume, tranquilidade sem ignorância, e com franqueza discreta, elegância viril, naturalidade para além do desafio (…).”


“A Insustentável Leveza do Ser” de Milan Kundera – um romance que me transporta para o campo do imaginário sem que eu dê por isso. Ciclicamente volto a este livro.


As Pontes de Madison County” de Robert James Waller – obra marcante porque acredito no Amor como força motriz que tudo transforma e tudo torna possível …

Dito isto, passo a palavra (ou a "batata quente") a:

Anomalias

Cabana de Palavras

Eternamente Menina

Humores

Poliedro

18.6.07

A gazela

Foto de A. Brito retirada daqui.


Gazella Dorcas

Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

(Rainer Maria Rilke)
Tradução: Augusto de Campos

2.6.07

Fiz um conto para me embalar

Foto colhida na net, aqui.

Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão da espuma as desfolhou.
Nenhuma soube para qual delas
Príncipe do mar cantou.

(Natália Correia)

26.5.07

Os caminhos da alma ...

Foto de X. Maya colhida aqui.

Os caminhos da alma
São como os do corpo
Desejosos de no mais longe
encontrar o ciciar duma voz
que diga:

Faz o que os códigos não permitem.

(Fernando Bouça)

18.5.07

Foto de George Braque colhida aqui.


Dentro de mim
vive um pássaro

sempre que me amas
sinto-o rasgar-me o peito
e partir ao teu encontro,
enquanto sufocas gritos
e respiras prazer.

(Ulisses Rolim)

26.4.07

Quasi

Foto colhida na net, aqui.

Um pouco mais de sol - eu era brasa
Um pouco mais de azul - eu era além
Para atingir, faltou-me um golpe de asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...

Assombro ou paz ? Em vão ... tudo esvaído
Num grande mar enganador de espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor ! - quase vivido ...

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,
Quase o principío e o fim - quase a expansão ...
Mas na minh´alma tudo se derrama ...
Entanto nada foi só ilusão !

De tudo houve um começo ... e tudo errou ...
- Ai a dor de ser - quase, dor sem fim ...
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se lançou mas não voou ...

Momentos de alma que, desbaratei ...
Templos aonde nunca pus um altar ...
Rios que perdi sem os levar ao mar ...
Ânsias que foram mas que não fixei ...

Se me vagueio, encontro só indicios ...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos de heroi, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios ...

Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí ...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi ..

Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir faltou-me um golpe de asa ...
Se ao menos eu permanecesse aquém ...

(Mário de Sá-Carneiro)

22.4.07

Prémio ...




A Lena do Cabana de Palavras atribuiu-me o prémio "Thinking Blogger Award" ... e deixou-me mesmo a ... pensar! :-)
Aqui lhe deixo um agradecimento especial por tal distinção!

Agora fico com uma difícil e espinhosa missão: para cumprir o regulamento, tenho de nomear cinco blogs como sendo os meus preferidos! Claro que os blogs que me fazem pensar e me deliciam e proporcionam bons momentos são muitos mais que cinco ... Bem, "noblesse oblige", tenho de cumprir as regras (será que vale entrar em círculo vicioso e nomear quem nos nomeou??? Não deve ser muito ético!). Aqui ficam pois os cinco que distingo com o "Thinking Blogger Award" :

... a magia das palavras ...
Fotos belíssimas e palavras plenas de magia que me transportam a outra dimensão ...

Coisas da Gaveta
Textos que nos chegam através da mão e dos olhos do Gui cuja prosa poética me delicia.

Espelhos
Momentos belos que nos fazem pensar e sentir bem; "cantinho" onde imagem, palavra e música se combinam na perfeição.

Eternamente Menina
Poesia belíssima ora escrita pela Menina como só ela sabe, ora seleccionada por ela com mestria e bom gosto. Juntando a isto ilustrações belíssimas - eis um blog que não perco.

Passo a Passo
Fotos da vida enquandradas por palavras bem escritas que nos fazem pensar e nos deliciam a alma.



Aqui fica uma flor para a Lena e para os por mim nomeados .

10.4.07

Ao longe, ao luar ...


Ao longe, ao luar,
No rio, uma vela
Serena a passar,
O que me revela
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me um estranho
E sonho, sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça,
Que amor não se explica.
É a vela que passa
Na noite que fica

(Fernando Pessoa)

21.3.07

Minuete invisível



Elas são vaporosas,
Pálidas sombras, as rosas
Nadas da hora lunar...

Vêm, aéreas, dançar
Com perfumes soltos
Entre os canteiros e os buxos...
Chora no som dos repuxos
O ritmo que há nos seus vultos...

Passam e agitam a brisa...
Pálida, a pompa indecisa
Da sua flébil demora
Paira em auréola à hora...

Passam nos ritmos da sombra...
Ora é uma folha que tomba,
Ora uma brisa que treme
Sua leveza solene...

E assim vão indo, delindo
Seu perfil único e lindo,
Seu vulto feito de todas,
Nas alamedas, em rodas,
No jardim lívido e frio...

Passam sozinhas, a fio,
Como um fumo indo, a rarear,
Pelo ar longínquo e vazio,
Sob o, disperso pelo ar,
Pálido pálio lunar ...

(Fernando Pessoa)

4.3.07

De onde me chegam estas palavras?

Imagem colhida na net aqui.


Nunca houve palavras para gritar a tua ausência

Apenas o coração
Pulsando a solidão antes de ti
Quando o teu rosto doía no meu rosto
E eu descobri as minhas mãos sem as tuas
E os teus olhos não eram mais
que um lugar escondido onde a primavera
refaz o seu vestido de corolas.

E não havia um nome para a tua ausência.

Mas tu vieste.

Do coração da noite?
Dos braços da manhã?
Dos bosques do Outono?

Tu vieste.
E acordas todas as horas.
Preenches todos os minutos.
acendes todas as fogueiras
escreves todas as palavras.

Um canto de alegria desprende-se dos meus dedos
quando toco o teu corpo e habito em ti
e a noite não existe
porque as nossas bocas acendem na madrugada
uma aurora de beijos.

Oh, meu amor,
doem-me os braços de te abraçar,
trago as mãos acesas,
a boca desfeita
e a solidão acorda em mim um grito de silêncio quando
o medo de perder-te é um corcel que pisa os meus cabelos
e se perde depois numa estrada deserta
por onde caminhas nua.

(Joaquim Pessoa)

19.2.07

Fresta

Foto colhida na net, aqui.


Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.

(Fernando Pessoa)

14.2.07

Anjo do teu corpo

Shine, foto colhida aqui


A parte que é
anjo
do teu corpo

e me procura a meio
da madrugada

Sobrevoando o lago
que é suposto
ser no meu sono
aquilo que calava

A parte que é
anjo
no teu corpo

e me visita
a meio da madrugada

descansando as asas
dos teus ombros
a meu lado:
em cima da almofada

(Maria Teresa Horta)

10.2.07

Aonde

Foto de Nanã Sousa Dias colhida aqui.


Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...
O eco ao pé de mim segreda... desgraçada...
E só a voz do eco, irónica, responde!

Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento, aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantando como um rio banhado de luar!

Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E só a voz do eco à minha voz responde...

Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...

(Florbela Espanca)

4.2.07

Pantera

Foto colhida na net, aqui.



No Jardin des Plantes, Paris


De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

(Rainer Maria Rilke)
(Tradução: Augusto de Campos)

23.1.07

Aquela Ilha ...


Aquela Ilha esquecida
Que eu habito adormecida
Que, à noite, eu vou habitar;

Aquela Ilha encantada
Que não se encontra de dia,
Pois fica na madrugada;

A Ilha não descoberta,
Onde a criptoméria aberta
Espalha em volta o luar;

A Ilha desconhecida
Que pelos caminhos do sonho
Se mostra a quem a buscar.

Àquela Ilha distante,
Não há ninguém que se afoite ...

Aquela Ilha esquecida
Que só tem um habitante:
Eu que lá vivo de noite ...

(Natália Correia)

19.1.07

Retrato

Foto colhida na net, aqui

No teu rosto começa a madrugada.
Luz abrindo,
de rosa em rosa,
transparente e molhada.

Melodia
distante mas segura;
irrompendo da terra,
quente, redonda, madura.

Mar imenso,
praia deserta, horizontal e calma.
Sabor agreste.
Rosto da minha alma.

(Eugénio de Andrade)

12.1.07

Sem título e bastante breve


Tenho o olhar preso aos ângulos escuros da casa
tento descobrir um cruzar de linhas misteriosas, e
com elas quero construir um templo em forma de ilha
ou de mãos disponíveis para o amor....

na verdade, estou derrubado
sobre a mesa em fórmica suja duma taberna verde,
não sei onde
procuro as aves recolhidas na tontura da noite
embriagado entrelaço os dedos
possuo os insectos duros como unhas dilacerando
os rostos brancos das casas abandonadas, á beira mar...

dizem que ao possuir tudo isto
poderia ter sido um homem feliz, que tem por defeito
interrogar-se acerca da melancolia das mãos....
...esta memória lamina incansável

um cigarro
outro cigarro vai certamente acalmar-me
....que sei eu sobre as tempestades do sangue?
E da água?
no fundo, só amo o lodo escondido das ilhas...

amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso
estou imóvel, a luz atravessa-me como um sismo
hoje, vou correr à velocidade da minha solidão

(Al Berto)

3.1.07

Retrato Ardente



Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

(Eugénio de Andrade)