22.10.08

Não vou pôr-te flores de laranjeira ...

Foto de Luís Miguel Mateus


Não vou pôr-te flores de laranjeira no cabelo
nem fazer explodir a madrugada nos teus olhos.

Eu quero apenas amar-te lentamente
como se todo o tempo fosse nosso
como se todo o tempo fosse pouco
como se nem sequer houvesse tempo.

Soltar os teus seios.
Despir as tuas ancas.
Apunhalar de amor o teu ventre.

(Joaquim Pessoa)

15.7.08

Quero acabar entre rosas ...

Foto colhida na net aqui

Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos vazias,
Crispadas febrilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstracta.
O que vivi? Era tão bom dormir!

(Álvaro de Campos)

8.6.08

Desejos Vãos

Foto de Pedro Casquilho em http://www.olhares.com

Eu queria ser o Mar d'altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu q'ria ser a pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu q'ria ser o Sol, a luz intensa,
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu q'ria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão e até da morte!

Mas o Mar também chora de tristeza ...
As Árvores também, como quem reza,
Abrem, aos Céus, os braços, como um crente!

E o sol altivo e forte, ao fim dum dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as Pedras ... essas ... pisa-as toda a gente! ...

(Florbela Espanca)

18.5.08

Gato que brincas ...


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

(Fernando Pessoa)

7.5.08

Corpo de ânsia



Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostava,
E te enleava
Aos meus músculos!

Olhos de êxtase,
Eu sonhei que em vós bebia
Melancolia
De há séculos!


Boca sôfrega,
Rosa brava
Eu sonhei que te esfolhava
Petala a pétala!


Seios rígidos,
Eu sonhei que vos mordia
Até que sentia
Vómitos!


Ventre de mármore,
Eu sonhei que te sugava,
E esgotava
Como a um cálice!


Pernas de estátua,
Eu sonhei que vos abria,
Na fantasia,
Como pórticos!


Pés de sílfide,
Eu sonhei que vos queimava
Na lava
Destas mãos ávidas!


Corpo de ânsia,
Flor de volúpia sem lei!
Não te apagues, sonho! mata-me
Como eu sonhei.

(José Régio)

4.5.08

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora,
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa:
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me –
às vezes ainda sou o menino que
adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

Ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal ...

Mas – tu sabes – a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


(Eugénio de Andrade)

25.4.08

Alquimia


Transbordam sensações ainda agora
ao sentir que se aproxima a noite fria,
pois sei que vem um sonho e me devora
transformando a negra noite em poesia.

Caem-me nos lençóis versos delicados,
pequenos nacos de indefinível gosto
a suspirar por sonhos já passados,
a alegrar-se em noites de desgosto,
a inundar-se de desejos recordados.

Mas nem o sonho me faz compreender
tão estranha e complexa alquimia!
Deixei-me sonhar. Vi meu corpo a arder.
Enquanto terna, a noite acontecia!

(Albino Santos)
inédito

20.4.08

Como açucena ...


Como açucena, abre-se o teu rosto
por sobre a doce, tímida paisagem:
serena imagem
na manhã de Agosto.

Como magnólia, vertes o perfume
das tuas ancas sobre o pinheiral:
ávido lume
casto e sensual.

Como pinho selvagem, te recebo
e amo no chão de areia ensolarado:
ingénuo efebo
deslumbrado.

(Daniel Filipe)

16.4.08

Reconheci-te ...

Foto de Mark Niemi retirada algures da Net

te reconocí por el recuerdo
por el espejo, por las manos
y esperé la noche y tu beso
por eso tardaste, para prepararnos

no esperaba nada más y te espero

deberá haber un lugar
dentro de nosotros como el tiempo que arde



Reconheci-te pela memória
pelo espelho, pelas mãos
e esperei a noite e o teu beijo
por isso tardaste, para nos prepararmos

não esperava mais nada e espero-te

deverá haver um lugar
tal como o tempo que arde dentro de nós

(Ulisses Rolim)

8.3.08

Receita de mulher



As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.

(Vinícius de Moraes)