18.5.08

Gato que brincas ...


Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.

(Fernando Pessoa)

7.5.08

Corpo de ânsia



Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostava,
E te enleava
Aos meus músculos!

Olhos de êxtase,
Eu sonhei que em vós bebia
Melancolia
De há séculos!


Boca sôfrega,
Rosa brava
Eu sonhei que te esfolhava
Petala a pétala!


Seios rígidos,
Eu sonhei que vos mordia
Até que sentia
Vómitos!


Ventre de mármore,
Eu sonhei que te sugava,
E esgotava
Como a um cálice!


Pernas de estátua,
Eu sonhei que vos abria,
Na fantasia,
Como pórticos!


Pés de sílfide,
Eu sonhei que vos queimava
Na lava
Destas mãos ávidas!


Corpo de ânsia,
Flor de volúpia sem lei!
Não te apagues, sonho! mata-me
Como eu sonhei.

(José Régio)

4.5.08

Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora,
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa:
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha – queres ouvir-me –
às vezes ainda sou o menino que
adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

Ainda ouço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal ...

Mas – tu sabes – a noite é enorme
e todo o meu corpo cresceu.

Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


(Eugénio de Andrade)