31.3.06

A brusca poesia da mulher amada

Imagem colhida aqui.

Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?

Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...

Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.

(Vinícius de Moraes)

25.3.06

Nas ervas

Foto original colhida aqui.


Escalar-te lábio a lábio,
percorrer-te: eis a cintura,
o lume breve entre as nádegas
e o ventre, o peito, o dorso,
descer os flancos, enterrar

os olhos na pedra fresca
dos teus olhos,
entregar-me poro a poro
ao furor da tua boca,
esquecer a mão errante
na festa ou na fresta

aberta à doce penetração
das águas duras,
respirar como quem tropeça
no escuro, gritar
às portas da alegria,
da solidão,

porque é terrível
subir assim às hastes da loucura,
do fogo descer à neve,

abandonar-me agora
nas ervas ao orvalho —
a glande leve.

(Eugénio de Andrade)

16.3.06

Os (teus) gestos

Adam & Eve de Tamara De Lempicka, colhido aqui

Disto ficarão pequenos gestos
nada de grandioso que se exclame

sorte de te ter junto aos meus restos
memória de tua boca fogo infame.

Vitória do teu corpo sobre o meu
no exacto momento em que te venço

tão só correr de nuvens sobre o céu
ou no fim do mundo um recomeço.

Queria inventar-te um sítio sem palavras
em que só sobre o corpo a luz derrama

sua generosa claridade.
Lembrar-te nos momentos em que amavas

— os corpos extenuados sobre a cama —
e havia um sol de não haver idade.

(Bernardo Pinto de Almeida)

13.3.06

Tentei fugir da mancha mais escura ...

Sea Serpents IV, de Gustav Klimt colhido aqui

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que me sai, sem voz, do coração.

(David Mourão-Ferreira)

6.3.06

Fado

Passion's Embrace de Alfred Gockel colhido aqui

Falam de nós na cidade
Porque dizem que te ofereço
Coisas de que não disponho,
Como se fosse maldade
Dar-te os olhos para berço
E os cabelos para sonho.
Dizem que quando eu me deito
Contigo uma lua negra
Vem fazer o casamento.
Como se fosse defeito
Saber que a vida não chega
Para o nosso sentimento.
Lá porque o nosso passeio
É uma fuga das grades
Que em cada gesto partimos,
Dão um nome muito feio
Àquelas intimidades
Em que ficando, fugimos.
Dizem que este desatino
É a maldita lembrança
Do pecado original?
Eu só sei que isto é destino
E mesmo que seja herança
É legado natural.
Porque é virtude tocar-te
Tu és mais puro que um deus
Purificas o que afagas.
Meu amor, só de afagar-te
A minha mão chega aos céus
E sou mais forte que as pragas.

(Natália Correia)