29.12.05

Penélope

Foto de Karin Rosenthal colhida em www.photoarts.com/

mais do que um sonho: comoção!
sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

e recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

(David Mourão Ferreira)

28.12.05

Andorinha secreta de um verão



Andorinha secreta de um verão,
que só nós dois sabemos, te revelas.
De que longínqua e solitária estrela
vieste iluminar-me o coração?

De que planeta ainda inominado?
De que mistério astral, corpo solar,
patagónia celeste, ignoto mar,
provém o teu perfil sereno e amado?

(Daniel Filipe)

27.12.05

Natal



De repente o sol raiou
E o galo cocoricou:

– Cristo nasceu!

O boi, no campo perdido
Soltou um longo mugido:

– Aonde? Aonde?

Com seu balido tremido
Ligeiro diz o cordeiro:

– Em Belém! Em Belém!

Eis senão quando, num zurro
Se ouve a risada do burro:

– Foi sim que eu estava lá!

E o papagaio que é gira
Pôs-se a falar: – É mentira!

Os bichos de pena, em bando
Reclamaram protestando.

O pombal todo arrulhava:
– Cruz credo! Cruz credo!

Brava

A arara a gritar começa:

– Mentira? Arara. Ora essa!
– Cristo nasceu! – canta o galo.
– Aonde? – pergunta o boi.
– Num estábulo! – o cavalo
Contente rincha onde foi.

Bale o cordeiro também:

– Em Belém! Mé! Em Belém

E os bichos todos pegaram
O papagaio caturra
E de raiva lhe aplicaram
Uma grandíssima surra.

(Vinicius de Moraes)

23.12.05

História Antiga

Foto colhida em www.bethlehem.it/

Era uma vez, lá na Judeia, um rei.
Feio bicho, de resto:
Uma cara de burro sem cabresto
E duas grandes tranças.
A gente olhava, reparava, e via
Que naquela figura não havia
Olhos de quem gosta de crianças.

E, na verdade, assim acontecia.
Porque um dia,
O malvado,
Só por ter o poder de quem é rei
Por não ter coração,
Sem mais nem menos,
Mandou matar quantos eram pequenos
Nas cidades e aldeias da Nação.

Mas,
Por acaso ou milagre, aconteceu
Que, num burrinho pela areia fora,
Fugiu
Daquelas mãos de sangue um pequenito
Que o vivo sol da vida acarinhou;
E bastou
Esse palmo de sonho
Para encher este mundo de alegria;
Para crescer, ser Deus;
E meter no inferno o tal das tranças,
Só porque ele não gostava de crianças.

(Miguel Torga)

Nota: Desejo a todos quantos por aqui passam um Bom Natal, pleno de Paz, Amor e Harmonia.

21.12.05

Presídio

Foto de Karin Rosenthal retirada de www.photoarts.com/

Nem todo o corpo é carne ... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco ...?

E o ventre, inconsistente como o lodo? ...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor ... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo ...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono ...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

(David Mourão-Ferreira)

20.12.05

Incêndio



Tu acendes a chama
do meu corpo
pões a lenha ao fundo
em sítio seco

Procuras no desejo
o ponto certo
e convocas aí
o lume aberto

Se a madeira demora
a ganhar fogo
tomas-me as pernas
e deitas lento o vinho

Riscas os fósforos todos
e depois
é mais um incêndio
que adivinho

(Maria Teresa Horta)

18.12.05

Laisse courrir ...

Foto de www.7art-screensavers.com

Laisse courrir
dans les couloirs secrets de ton corps
les chevaux vertigineux de tes désirs.
Eux seules connaissent la destinée
que l'ésprit voilé par des brumes honteuses
n'ose pas découvrir.

(Natália Correia)

16.12.05

Avião

Foto colhida em afixe.weblog.com.pt

Apetecia-me oferecer-te já este livro
este pôr do Sol este avião

levar-te muito para um lugar tranquilo
trazer-te pelo ar uma canção

chamar um rio a ti quando com sede
do sono da manhã te levantasses

saber do vento o termo com que entende
o primaveril milagre dos lilases.

Apetecia-me ser noite ou ave ou luz
ou simplesmente a lua a iluminar-te

ou espelho desdobrando em corpos nus
teu corpo singular se vais deitar-te:

poderoso magneto, íman que induz
animal demente quando a amar-te.

(Bernardo Pinto de Almeida)

15.12.05

Pele

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel
de mais que tua pele ser pele da minha pele

(David Mourão-Ferreira)

13.12.05

A noite que fica


Ao longe, ao luar,
No rio, uma vela
Serena a passar,
O que me revela
Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me um estranho
E sonho, sem ver
Os sonhos que tenho.
Que angústia me enlaça,
Que amor não se explica.
É a vela que passa
Na noite que fica

(Fernando Pessoa)

11.12.05

Conselho

Paul Klee - Garden

Cerca de grandes muros quem te sonhas
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.

Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.

Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és —
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês ...

(Fernando Pessoa)

8.12.05

Encontro

Foto de Jomané em www.olhares.com/

Como se um raio mordesse
meu corpo pêro rosado
e o namorado viesse
ou em vez do namorado

um novilho atravessasse
meus flancos de seda branca
e o trajecto me deixasse
uma açucena na anca

como se eu apenas fosse
o efeito de um feitiço
um astro me desse um couce
e eu não sofresse com isso

como se eu já existisse
antes do sol e da lua
e se a morte me despisse
eu não me sentisse nua

como se deus cá em baixo
fosse um cigano moreno
como se deus fosse macho
e as minhas coxas de feno

como se alguém dos espaços
me desse o nome de flor
ou me deixasse nos braços
este cordeiro de amor

(Natália Correia)

6.12.05

Quase nada

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

O amor
é uma ave a tremer
nas mãos de uma criança.
Serve-se de palavras
por ignorar
que as manhãs mais limpas
não têm voz.

(Eugénio de Andrade)

3.12.05

Poesia

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Dá a surpresa de ser.
É alta, de um louro escuro.
Faz bem só pensar em ver
Seu corpo meio maduro.

Seus seios altos parecem
(Se ela estivesse deitada)
Dois montinhos que amanhecem,
Sem ter que haver madrugada.

E a mão do seu braço branco
Assenta em palmo espalhado
Sobre a saliência do flanco
Do seu relevo tapado.

Apetece como um barco.
Tem qualquer coisa de gomo.
Meu Deus, quando é que eu embarco?
Ó fome, quando é que eu como?

(Fernando Pessoa)

1.12.05

Fernando Pessoa

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?

(Fernando Pessoa), 17-6-1932

Nota: Já que no próprio dia não pude homenagear o mestre no aniversário do seu falecimento (ontem), aqui fica hoje a minha homenagem.