29.10.05

Os jardins de Adónis IV

Foto de Rebeca McGaw em www.wrytersfyre.atspace.com

Alta na sombra a crista de agapantos,
Langue no lago a lua é uma sonata.
Vergam-se ao sono as rosas. Os amantes
Paseiam no jardim com pés de prata.

No repuxo chilreiam sons remotos.
Vultos de fumo expiram sob os plátanos.
Tudo se afasta. Uma elegia. Os mortos
Vêm buscar as flores que nos deixaram.

Cala-se o tempo. O amor procura
A sua estrela que caiu na relva.
Tudo se afasta. É estranhamente pura
A sensação de estarmos sós na terra.

(Natália Correia)

27.10.05

As sem-razões do amor


Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
E nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
E com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
É semeado no vento,
Na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
E a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
Bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
Não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
Feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
E da morte vencedor,
Por mais que o matem (e matam)
A cada instante de amor.

(Carlos Drummond de Andrade)

24.10.05

Eu sei, não te conheço mas existes ...

Foto de Karin Rosenthal colhida em www.photoarts.com/

Eu sei, não te conheço mas existes.
por isso os deuses não existem,
a solidão não existe
e apenas me dói a tua ausência
como uma fogueira
ou um grito.

Não me perguntes como mas ainda me lembro
quando no outono cresceram no teu peito
duas alegres laranjas que eu apertei nas minhas mãos
e perfumaram depois a minha boca.

Eu sei, não digas, deixa-me inventar-te.
ao é um sonho, juro, são apenas as minhas mãos
sobre a tua nudez
como uma sombra no deserto.
É apenas este rio que me percorre há muito e desagua em ti,
Porque tu és o mar que acolhe os meus destroços.
É apenas uma tristeza inadiável, uma outra maneira de habitares
Em todas as palavras do meu canto.

Tenho construído o teu nome com todas as coisas.
tenho feito amor de muitas maneiras,
docemente,
lentamente
desesperadamente
à tua procura, sempre á tua procura
até me dar conta que estás em mim,
que em mim devo procurar-te,
e tu apenas existes porque eu existo
e eu não estou só contigo
mas é contigo que eu quero ficar só
porque é a ti,
a ti que eu amo.

(Joaquim Pessoa)

22.10.05

Antes de tudo ...

"Mais além" de Vitor Melo

Antes de tudo, os olhos:
Aves de ternura, implorando ninhos
em árvore segura.
E a boca, ele viu-a fonte:
eterna nascente de fé no amor,
bordão do descrente.

Amaram-se em silêncios de espanto,
os dedos ávidos
descobrindo sementes de poemas
adormecidos nas fundas raízes dos corpos.
Esqueceram Deus porque Deus lhes perdoava
e esqueceram os homens
porque os homens os não conheciam.
As bocas
afogavam sombras de futuro
talhadas a incerteza
nas próprias almas
e demoraram-se no tempo
porque, cúmplice,
o tempo se demorou neles.

Beijaram-se, dizendo adeus
(quase que um rogo)
em cada peito
uma rosa cor de fogo.

Lelo (23/12/84)

20.10.05

A boca

Foto colhida em http://pro.corbis.com/

A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo cintila,
a boca espera
(que pode uma boca esperar senão outra boca?)
espera o ardor do vento
para ser ave e cantar.

Levar-te à boca,
beber a água mais funda do teu ser
se a luz é tanta,
como se pode morrer?

(Eugénio de Andrade)

18.10.05

As Flores VII

Foto de Pedro Medeiros colhida em www.olhares.com/

Com fragrante delicadeza
De um mistério surges, ó rosa,
Para seres o prazo de beleza
Eternamente transitória;

O teu universo conciso
Só dura o tempo de, amistosa,
Dizeres num recado exíguo
Que o universo é uma rosa.

Nacarado prenúncio ou vestígio
De uma imcompreensível ordem,
É para renomear o prodígio
Que te damos um nome: rosa.

(Natália Correia)

15.10.05

Vegetal e só

Foto de Pedro Costa Pereira colhida em www.olhares.com/

É outono, desprende-te de mim.

Solta-me os cabelos, potros indomáveis
sem nenhuma melancolia,
sem encontros marcados,
sem cartas a responder.

Deixa-me o braço direito,
o mais ardente dos meus braços,
o mais azul,
o mais feito para voar.

Devolve-me o rosto de um verão
sem a febre de tantos lábios.
Sem nenhum rumor de lágrimas
nas pálpebras acesas.

Deixa-me só, vegetal e só,
correndo como um rio de folhas
para a noite onde a mais bela aventura
se escreve exactamente sem nenhuma letra.

(Eugénio de Andrade)

12.10.05

Auf einmal faßt die Rosenpflückerin


Auf einmal faßt die Rosenpflückerin
die volle Knospe seines Lebensgliedes,
und an dem Schreck des Unterschiedes
schwinden die (linden) Gärten in ihr hin.

(Rainer Maria Rilke)

A mulher colhe rosas. De repente
toca o membro vivo dele, botão
cheio. Assusta-a a diferença, e num instante
esvaem-se nela os jardins (de Verão).

(Tradução de João Barrento)

11.10.05

Não tenhas medo do amor

Foto colhida em www.jimnshelle.net/

Não tenhas medo do amor. Pousa a tua mão
devagar sobre o peito da terra e sente respirar
no seu seio os nomes das coisas que ali estão a
crescer: o linho e genciana; as ervilhas-de-cheiro
e as campainhas azuis; a menta perfumada para
as infusões do verão e a teia de raízes de um
pequeno loureiro que se organiza como uma rede
de veias na confusão de um corpo. A vida nunca
foi só Inverno, nunca foi só bruma e desamparo.
Se bem que chova ainda, não te importes: pousa a
tua mão devagar sobre o teu peito e ouve o clamor
da tempestade que faz ruir os muros: explode no
teu coração um amor-perfeito, será doce o seu
pólen na corola de um beijo, não tenhas medo,
hão-de pedir-to quando chegar a primavera.

(Maria do Rosário Pedreira)

8.10.05

Mes mains se cherchent . . .


Foto colhida em http://pro.corbis.com/

Mes mains se cherchent sur ton corps
pour saisir ta forme la plus compléte.
Si tu pars, je garderai la robe
de ta nudité parfaite.

(Natália Correia)

5.10.05

Se . . .


Foto de X. Maya colhida em http://www.olhares.com/


Se o luar agora transbordasse
Da lua cheia e num enleio
Sua luz branda me abraçasse
E me fechasse dentro do seio . . .

Se o sol magnânimo soltasse
Um fio quente do seu cabelo
E no segredo me enrolasse
Do seu dourado novelo . . .

Se um astro agora me arrebatasse
Na sua luz e de repente
A minha sombra se iluminasse
E caminhasse na minha frente . . .

(Natália Correia)

4.10.05

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensangüentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio [puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


(Alexandre O'Neil)